Friday, December 9, 2011

MEMÓRIAS DE UM CAVALO DE MADEIRA



do meu senhor recebi olhos
para não entender o mundo
e chorar pelos meus mortos

do meu senhor recebi mãos
para segurar com cuidado
tudo o que não tinha

do meu senhor recebi a morte
para fugir dela como se pudesse receber a vida
sem ter que nada oferecer em contrapartida

meu senhor me deu espelhos
para poder ver cada vez mais rápido andar o tempo
e seguir sempre com maior esforço o branco das têmporas

meu senhor me deu água
para que eu desse da minha pequena ração a quem me pedisse
e para com ela lavar meu sujo e disfarçar o odor do meu trabalho

meu senhor me deu amor
para poder chegar a ser também mulher, louco e menino
e aprender a perder e perder de novo o que tinha aprendido

meu senhor me deu ódio
para deixar que me batessem os que eu desmentisse
e andar com zelo no mundo mas sem nunca ter medo

meu senhor me deu a alegria
para que outros se comprazessem com a minha companhia
e num outono, abandonado aos meus cães, ressentir o prazer da solidão

meu senhor me deu pés
para rastejar ao pedir perdão
e voltar à casa de onde não deveria ter partido

meu senhor me deu ouvidos
para eu escutar em silêncio a sua voz
como se ouve uma música que insiste em se esquecer

meu senhor me deu narinas
para bater contra o vidro indevassável de uma vitrina
e sentir o cheiro do pão tentar minha fome mendiga

meu senhor me deu comida
para sentir fome uma vez terminada
e ter forças para ir de novo buscá-la

meu senhor me deu a dor
para eu aprender a enxergar nas sombras
e sorrir para quem não me cuidou

meu senhor me deu o pensamento
para que eu pudesse ver o que não vejo
e soubesse mentir, e voltar atrás, e depois recair no erro

do meu senhor recebi a memória
para eu inventar um céu de infância que nunca existiu
e pensar ser sempre o mesmo, mesmo fluido como um rio

do meu senhor recebi o mundo
para ser um bom jardineiro e em vão buscar deter o mato
que acerca e um dia engole a plantação

do meu senhor recebi a vida
inocente ainda para que me instruísse
e depois deixar inútil gravada no olvido a minha lição

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