Saturday, January 14, 2012

POR QUE OS SEUS OLHOS INSISTEM EM FICAR AO MEU REDOR?


Uma vez, muito antes de haver morte ou desesquecimento,
quando o teu olhar era o próprio epicentro
de todo o desejo na criação,
éramos todos ouvidos para tomar parte
em cada relance que você lançasse
de uma interpretação exata da tua intenção.
Os teus olhos inumeráveis circundavam
cada um de nós, prontos a serem apalpados
e abertos quando quebrados.

Como então você pôde nos haver abandonado?,
se sabia que meu desamor sucumbiria facilmente em falsear os fatos,
sendo as tuas maneiras tão misteriosas,
e minha noção delas, tão insidiosa...

Conformado, passei a portar-me
com os movimentos de um acrobata,
lidando com a tua fortuna de imagens
com a minha arte desajeitada:
para dizer a mais pura verdade,
eu nunca soube como reunir tantas de você
num único conjunto de não se ver.

No início, me sentia como colocado
mudo diante de um oráculo,
contando como exclusivo recurso
adivinhar ao azar tudo
o que pudesse te dissesse respeito,
uma vez que havíamos desfeito
nossos antigos canais de comunhão,
teus olhos tendo devorado os meus,
e estes, a sua turno,
perdendo da visão
a intuitiva falsa luz guia dos teus.

Nada obstante, assim como todo homem
que se torna cego após ter inquirido
dentro de si mesmo por demasiado tempo,
acabei por desenvolver um segundo conjunto de sentidos adquiridos,
tais como os que excedem em um morcego,
para poder discernir um horizonte
inteiramente novo, a parte de todo
o teu rico tesouro de lapsos e engodos.

E, ao fazê-lo, tive em certa conta algum êxito
em manter você me conduzindo à distância,
similar a um campo de força ou maldição persecutória,
que felizmente forçavam o seu caminho por meio
do crivo poroso da minha pele, resseca de ânsias,
e do círculo pobre de meus expedientes de relutância,
radioadictivamente penetrando nos meus nervos
e acrescendo pouco a pouco entradas novas
no meu velho acervo de verborragia sensória.

Então já poderia me gabar em ter sido concebido
conforme o teu reflexo, o ponto focal ausente
de todo o desenho divino, há muito esquecido.
Mas temia
me aproximar em demasia,
atraído pelo contingente
excessivo de dados que em você se exibiam,
de modo você terminaria por perceber
minhas intrusões não intencionadas sobre você.

Porque eu juro, como fazem os amantes, que nunca
cobicei o ciúme. Nem te pedi nas minhas preces.
Lembre-se de que, não importa o que você fizesse,
nada poderia passar despercebido por minha falta de argúcia,
já que eu estava permanentemente sob o influxo potencial
da tua incontrolável permeabilidade universal.

Todavia, após se notar a tal ponto observada,
concluí que o costume acabaria por torná-la
em todo indiferente à minha presença,
apagando nessa esteira toda centelha
de esperança de que um dia
você, quem sabe, notaria...

Sem providências a serem tomadas, como último adeus,
passei a aspirar apenas a ter podido ter nascido Deus.
Pois, ao morrer, eu exigiria ser ressuscitado
num mundo minuciosamente diferente, moldado
conforme a tua mais precisa dessemelhança.
De sorte a poder perceber mais facilmente
os traços que eu oponho ou confirmo em tua imitação
(embora você pudesse ainda confundir essa nova aliança
com minha humilhante e autosserviente
repetição por princípio por um mínimo de atenção).

Pois somente em virtude de permanecer removido,
eu pude me tornar inteiramente receptivo
mesmo àquelas que você jamais chegou a ter sido.
Observe que, ao invés de te representar como signo,
eu desejava tocar naquele gesto pequeno
pelo qual você executa ou falha em levar a termo
cada mínimo esboço ou tentativa de comunicação:

Eu ansiava pelo meramente real atrás do genuíno,
eu visava àquela espécie de falseamento tão exato
que não hesita em contagiar-se além dos magros
confins do legítimo, tornando o verossímil
distorcido e desajeitado, como um espelho soprado
em uma superfície recurva, fadado
a desvelar somente por meio
de suas máculas e defeitos.

Mas agora, depois de tantos gêneses inseminados
ou então abortados ou não desejados,
agora que é melhor mesmo ficarmos
para sempre doceamargamente separados
(devido à falta de tatos e contatos,
ou por um teimoso silêncio magoado
que se pretende fundo e fundado,
mas suspeito que seja somente raso),
podemos finalmente merecer, por compensação,
a plena isenção de todo gênero de contrição,
o qual quase sempre toma raiz
em certo matiz de compreensão infeliz.
E finalmente parecemos estar mais entrosados.

Decerto porque, tais espelhos paralelos
encostados um contra a face negra do outro,
nos é possível implementar ajustes finos
e manter-nos a salvo de todo ruído
que pudesse canceler ou superpor-nos,
tais dois conjuntos precisamente opostos
e complementares de retratos do cosmos,
sendo um do outro o reflexo
do espanto recalcado no recôndito
lado escuro dos nossos sonhos.

Certamente, do mesmo modo se houvéssemos
sido desde o princípio confrontados e apagados
por um padrão cru e imaculado
de transcendência, como um olho a nós externo,
ao qual nós, corpos sós, nunca tivemos acesso.

Imagino ser o mesmo o que sucede com uma alcateia de lobos,
que se assombra com o calor e fulgor de um fogo,
que os move mais perto uns aos outros,
e ao qual assistem deslumbradamente juntos,
sem serem jamais capazes de conceber
como fazer
para trazê-lo dentro deste mundo.

Thursday, January 12, 2012

LINHAS CRUZADAS


Você tinha sido o meu cara.
Eu tinha sido a tua dona.
Eu te havia pago uma soma.
Já você, com ouro pagara,

Que nos ardeu num fogo a dois.
Calados o fogo e as suas cinzas,
Vimos as centelhas de nós
Reacender a fogueira extinta.

Você me cedera o teu nome,
Eu só ofereci minha fome.
Teu choro me ensinou o som.
Mas eu te retornei teu dom,

Ao te largar só nos caminhos,
Onde só dois seres sozinhos
Podem estancar o rio do nada,
Mandando os pés moverem a estrada.

Um dia eu fui o teu paizinho,
E você, minha mulherzinha.
Você me deu um ventre sem vinho,
Lá cresceu minha erva daninha

Que nos alimentou um dia,
Tão breve que pareceu ser
A eternidade. Todavia,
Pouco tardou em nos morrer.

Eu tinha sido o teu carrasco,
Enquanto você, minha puta.
Rufiões têm sua linguagem espúria.
E você, usava o grego ático.

Uma só língua pra falar
Jamais pôde ser o veículo
Com que logramos conversar:
Se você entende estes ruídos,

Ninguém crerá. Pois não pretendo
Sequer roçar os teus ouvidos.
Não me importa ser compreendido.
Hoje falo a sós com o ridículo.

LINHAS CRUZADAS


Você tinha sido o meu cara.
Eu tinha sido a tua dona.
Eu te havia pago uma soma.
Já você, com ouro pagara,

Que nos ardeu num fogo a dois.
Calados o fogo e as suas cinzas,
Vimos as centelhas de nós
Reacender a fogueira extinta.

Você me cedera o teu nome,
Eu só ofereci minha fome.
Teu choro me ensinou o som.
Mas eu te retornei teu dom,

Ao te largar só nos caminhos,
Onde só dois seres sozinhos
Podem estancar o rio do nada,
Mandando os pés moverem a estrada.

Um dia eu fui o teu paizinho,
E você, minha mulherzinha.
Você me deu um ventre sem vinho,
Lá cresceu minha erva daninha

Que nos alimentou um dia,
Tão breve que pareceu ser
A eternidade. Todavia,
Pouco tardou em nos morrer.

Eu tinha sido o teu carrasco,
Enquanto você, minha puta.
Rufiões têm sua linguagem espúria.
E você, usava o grego ático.

Uma só língua pra falar
Jamais pôde ser o veículo
Com que logramos conversar:
Se você entende estes ruídos,

Ninguém crerá. Pois não pretendo
Sequer roçar os teus ouvidos.
Não me importa ser compreendido.
Hoje falo a sós com o ridículo.

AMOR - MODELO DE ARMAR


Todo amor
para que sobreviva
escolhe as suas armas
e as entrega às vítimas.

Bombons, bolhas de sabão
ou balas do ciúme.
Mentiras verdadeiras,
feitiços retentados e perfume.

Todo amor
para ser armado
necessita
daquilo de que mais não precisa.

Anéis confirmatórios,
eu-te-amos mas somente se reincididos
de modo espontâneo, papel
passado e filhos, mesmo os de aluguel.

Todo amor para ser esquecido
pede ao esquecido impossivelmente
que de si se lembre
ou então não se queixe.

Lembrar de quem não mais se é
não há de ser ofício fácil.
Pousar de novo sobre os próprios pés
nervos requer e mais ossos de aço.

Todo amor
para ser lembrado
pede devoção
como qualquer ídolo de barro.

O consolo frágil do falso perdão. Perdão resignado
que não foi rogado, nem podia ser dado
por quem deus não foi nem foi revelado.
Arma de amor enfim desarmado.

Todo amor
para poder morrer
pede o pedágio da dor,
remédio que nos mata sem reviver.

E após tanto descuidado de si e tempo escorrido,
não é fênix que sobra, mas cadáver que vive
aqui dentro escondido - não descansarão amor e suas obras
até que um dia nos exorcizem vivos.

Todo amor
somente para ser vivido
precisa não ter sentidos
ou tê-los mais que precisos.

Ser consistente por absurdo, ou a renúncia disso tudo.
Para vivê-la, ainda mais louca,
de nós pede e merece apenas
exatamente o que nos rouba: a vida toda.

PERGUNTAS DE AMADOR



Peço licença
para perguntar apenas
por que Amor,
que se jurou tanto,
findo o encanto,
ao deixar-nos a sós, durou
menos que a dor que atrás de si deixou?

Por que Amor, que se mostrou
tão forte e nos dominou
contra ou a favor da nossa vontade,
jurando ser maior que a própria morte,
visto de perto, quando já era tarde,
pereceu mais débil que a paz que roubou,
e menor do que a vida e mero servo da sorte?

Por que Amor
que se dizia muito,
ou pelo menos se tinha por grande o bastante,
com desleixo no descuido, pois pouco astuto,
ou excesso de respeito, porque sem recurso,
acabou assim tāo diminuto
e mesmo menor do que antes?

E um pai generoso, que todos se escondem,
filho de quem somos pouco a pouco,
sem que ouçamos responde:
que só porque em vez de eterno fosse fraco,
é que o amor pôde crescer para depois morrer,
como deve nascer frágil um deus encarnado
ou como cumpre morrer um herói trágico.

Pois só porque amor fôra tão pouco,
é que se pôde poupar para virar duradouro.
E porque era tão pequeno e medido
é que nos forçou a ficarmos fortes de tão loucos.
E somente porque tão vazio fosse
é que um dia o Amor pôde
tornar-se mais que pleno, infinito.

Simplesmente porque fosse feito, como nós,
da mesma matéria com que se fazem os dias,
é que pôde amor um dia ser o que não seria.
E então nos queimou para deixar de arder depois.
Até que algum outro dia, reerguidos da terra fria,
surpresos nos sentimos reacesas as cinzas,
e, ora, quem diria...!

E por que também corpo, era feito de carne e de engenho,
de gestos e de meios,
e palavra que eu não saberia.
E também era misto de verbo doce e de dura argila.
Um pouco tarde, pouco cedo. Parte noite, parte dia.
E assim, sendo meio aço e meio medo, possuía
tanto honra quanto desprezo, precipitação e sabedoria.

E, portanto, se foi um dia,
foi
não porque nunca existira,
se foi simplesmente
porque também foi,
como a gente,
uma coisa viva.

Monday, January 9, 2012

A DEFESA DE NARCISO


nos meus anos moços
fui o mais admirável
jovem e bardo
que podia ser escutado
nestas contradas

mas, depois de afogado,
não me foi mais dado
escapar desta morada,
feita de talo aprumado
e luz perfumada

por força de uma sentença
proferida em desfavor
da progênie do amor
- assim, diz-se de mim,
que também tive residência

dentro de uma torre de marfim,
trancado viçoso e vivo numa cela
almofadada de pétala...
todavia, enquando bardos não param
de cantar mais que o necessário,

também foi parte de minha pena
perder minha voz amena,
restando desde então isento
do poder de acender de novo
o arbusto de fogo chamado desejo

sustentei que um renovo
não pode servir de medida
para julgar da planta ainda não crescida,
nem responde pelo gosto dos seus frutos
verdes ou maduros

os julgadores não tiveram clemência
diante dos meus recursos
e me usaram como exemplo de culpa
a dissuadir as gerações futuras
de buscar fundo demais nas aparências

desse modo, meu destino e dos meus iguais
tem sido o eco deste silêncio eterno,
apenas por que nós homens
fomos feitos para ser
presas da mesma fome

que dois vazios amarra,
na solidão que cada vez mais aparta
toda metade da metade que se amara,
para que pudessem ser um só depois
de terem sido apenas dois

Sunday, January 8, 2012

FIM DE CASO


Agora, caso encerrado,
fica mesmo meio complicado
explicar (e compreender)
por que

tantos encontros se desencontraram,
quantas metades terceiras sobraram,
o que se perdeu por querer
e o que se levou sem merecer.

Mas difícil, fato consumado,
difícil para valer,
é se lembrar de se esquecer, ou
se esquecer do que se sonhou.

Friday, January 6, 2012

NOVO PACTO CIVIL

NOVO PACTO CIVIL: ACOMPANHADO DO ROL DOS DIREITOS HUMANOS VELHOS E NOVOS PARA SERES HUMANOS E ASSIMILADOS


Todo homem terá direito a ser homem.
Terá direito a não ter carro ou trabalho e será homem
para todos os efeitos e mesmo a despeito do seu desejo
de não ser homem.

Todo homem terá o direito de não ser ninguém
e, nesse caso, embora o exercício desse dom derivado
possa privá-lo de tudo mais, nunca a só renúncia será capaz
de impedir que todo ninguém seja também alguém.

Pois a todos assistirá o direito de não ser
coisa nenhuma no domínio do ser, a não ser
do fato e do direito por seu mero existir manifestado
de ser um homem, e quanto menos com isso se queira dizer.

E assim cada pessoa terá direito a consumir ou renunciar
a todas as prerrogativas e deveres que à gente incumbem,
sem que fazendo isso em coisa se transmude em algo diferente
a ponto de deixar de ser espécime gente da espécie gente.

Terá o direito de ser ou deixar de ser o que bem pretender,
ser homem do gênero homem ou mulher, assexuado ou bicha,
sapatão ou hermafrodita, infeliz com isso ou feliz da vida,
e poderá trocar de papel e nome nos papéis a que tem direito pelo simples fato de ser homem.

E todo homem ou mulher, velho ou jovem será também autônomo
em anuir a ser objeto ou sujeito do desejo alheio, salvo se inidôneo
para tal acordo, segundo cálculo racional, guiado pela ciência empírica
e isento de todo preconceito, hipocrisia ou insensatez metafísica.

E como todo homem terá direito a ter desejos ou não querer tê-los,
terá direito a desejar ter dinheiro ou a não o apetecer,
ou senão, mesmo querendo, e ainda o perseguindo,
se seguir não tendo, continuará homem em iguais dever e direito.

Todo homem terá direito a não ter terra e casa,
embora possa lhe aprouver aspirar por uma,
mantendo em todo caso o título de ser humano,
sem ser jamais proprietário de coisa nenhuma.

Portanto, todo moço, criança, velho ou mulher,
por ter tido o direito de nascer moço, criança, velho ou mulher,
terá igualmente o direito de nascer pobre.
E continuar mesmo assim tendo o direito de ter direitos.

Terá direito a não ter o que comer
e seguir sendo homem, apesar da fome.
Terá direito a ser doente
e seguir sendo gente, doe quanto doer-lhe.

Terá direito a nascer na favela e continuar e morrer nela.
De ser índio, mulato ou pardo, ruivo, verde ou preto,
e continuar sendo. Como lhe tocará o direito de ser branco
e, querendo ser negro, sê-lo, mesmo sem lograr êxito,

e, nessa hipótese poderá tornar atrás e conformar-se,
mas sempre lhe assistindo o direito de fazer sua escolha,
mesmo quando não teve escolha, ou, tendo podido,
escolhendo ser diferente, continuar sendo gente.

E mesmo não tendo decidido ser isso ou aquilo continuar sendo
senhor do seu destino, tratador do seu desejo,
pai complacente de sua falta de sino,
ou guardião diligente de seu diferente juízo.

E podendo ou não podendo pagar seu imposto,
todo homem prosseguirá sendo homem,
e terá o direito de buscar a felicidade onde
julgar que ela esteja, e de ter chances iguais a todos

ao persegui-la, seja modesto ou ainda se rico fosse,
e, sem perturbar a justa busca dos outros,
terá o direito de buscá-la do seu próprio jeito,
ou simplesmente não buscá-la, se for esse o seu gosto.

E sua ação só será punível caso cause prejuízos relevantes a terceiro,
que são aqueles cuja admissão tornaria inviável qualquer solução
de convivência racional. Mas não havendo modos de reparação,
todo homem será sujeito a uma pena proporcional a seu malfeito.

Todo homem terá informado das consequências dos seus atos,
e, encarcerado, pagará seus erros sem perder quaisquer outros direitos
que lhe cumprem por ser homem.
E, uma vez livre, será tão homem como continuou sendo desde o passado.

Todo homem terá em suma similar oportunidade de escrever sua história.
E, sendo capaz, terá o direito exclusivo de fazer e ver respeitadas as suas escolhas.
E, sendo humano, terá o direito de errar.
E, tendo errado, terá sempre o direito de fazer outras, certas ou tolas.

Porque todo homem terá direito a não ser direito nem perfeito.
Será assim titular inalienável da prerrogativa de errar e não ser exemplo.
E de ser tosco ou mesmo estúpido, ver novela ou levar tatuagem,
pois que a nenhum outro pode transferir seu direito de ser o único dono

de seu destino ou corpo: terá direito a usar piercing, se automutilar,
pular de asa-delta ou ser piloto de caça ou fórmula 1, ser enfim burro ou preguiçoso,
não ter estudos ou gastar seu tempo com baile ou jogo,
ter talentos naturais ou não naturais e optar por desenvolvê-los ou 0s refugar.

Fumar consciente dos riscos num cálculo de prazer e prejuízo
que só a si deve tocar. Ir e morrer em guerra local ou estrangeira,
lutando por lucros de gente terceira, enfim terá
o sumo direito ao suicídio,

pois como se pode afirmar que assistem
dignidade e autonomia
a alguém impedido de arriscá-la
ou tolhido da arbítrio de privar-se da própria vida?

Mas será válida esta sua opção
somente se for fruto de uma decisão ponderada e causada
pela própria força da reflexão,
não por medo, vergonha ou desinformação,

ou por obra de um mal físico ou do espírito
que o prive da visão lúcida
que lhe permita enxergar o horizonte da vida
em toda a sua envergadura.

E todo homem, ao morrer,
terá atestado no registro de óbito como causa do incidente
o fato de ter morrido no ato de estar sendo
um homem vivente.

Terá direito a ser nerd ou punk, e continuar sendo
Terá direito a ser sedentário ou senão desportista,
portador de especial necessidade ou normalizado,
e continuar sendo, se outro não queira ou não se consiga.

Terá direito a não falar português de gramática e ser escutado
com tanta ou mais ênfase que se tivesse falado
o mesmo discurso fundo ou raso com chiado de português europeu
e suas feias consonantes truncadas e caprichosas ênclises.

E, prosseguindo o elenco que não se entende exaustivo,
terá o direito de crer em um deus qualquer,
mas com todo respeito ao leigo,
e sem o direito de impor a sua religião a ninguém,

decisão essa quase sempre ditada pelo hábito irrefletido,
ou senão pela falta de coragem em arrostar-se a face
sempre difícil da verdade, que é uma dama difícil e exigente,
que nunca se entrega de graça pra gente,

exigindo trabalho e dedicação, compromisso e fidelidade.
Então não lhe será digno nem permitido doutrinar os filhinhos seus
na fé que escolheu, privos que estes são da maturidade e formação
necessárias para decidirem por si mesmos por crerem ou não em certo deus.

Que sejam mantidos livres para alcançar a verdade por suas próprias vias,
a salvo da tirania ainda que bem intencionada dos seus guias.
Pois deus está em nenhum ou todo lugar, basta a divina e mundana vontade
de o buscar para um dia encontrá-lo, quem sabe jogando dados...

E todo homem será por princípio sujeito ético, discursivo e de direito,
e um fim em si mesmo, mesmo sem o querer ou saber, a ponto que poderá
optar de modo provisório e parcial por ser às vezes objeto,
no trabalho voluntário ou pago, ou na atividade sexual,

se for isso de seu agrado ou conveniência, como, por exemplo,
se disso necessitar para prover o seu sustento.
E de se comunicar com quaisquer outros homens, por mais longe
que estejam e no que quer que esses por sua vez creiam.

Terá o direito de ser livre para morar e trabalhar em qualquer lugar do mundo,
estabelecer-se, pagar os tributos e falar a língua de outros países,
porque todo homem é membro titular da universal comunidade humana,
e inválida toda lei que erga muros à cidadania, ou que dela o prive.

E não haverá autoridade legítima, e regra não se obedecerá,
nem decisão alguma se tomará se não for baseada em argumentações
objetivamente aferíveis e consentíveis pela melhor das razões,
sensíveis à investigação e ao aprendizado dos fatos,

em lugar de sentimentos vagos, preferências imponderáveis,
superstições ou crenças sem fundamentos causados,
juízos de valor ou preconceitos. Assim, o modo como convivemos
será ditado não pelo que se dá na natureza,

mas pela busca racional de melhorar a nossa convivência,
e pelo projeto comum de nos assegurar a prerrogativa
de sermos felizes se o queremos e como o queremos.
Portanto, sendo homens ou mulheres, e, por conseguinte, sujeitos

a toda sorte de pressões genéticas e sociais desiguais,
seremos considerados iguais por direito, mesmo não sendo,
e, por motivos similares, seremos todos iguais,
independentemente de etnias ou circunstâncias locais ou de classe ocasionais.

E a despeito disso, louvados em nossas peculiaridades.
Porém, por mais desiguais que sejamos, ainda assim seremos
todos por direito iguais até o ponto em que cada possível diferença
não influa razoavelmente em nosso poder de ação

ou no poder de podermos mudar de direção, caso então
deverá haver compensação na medida de sua influência prejudicial.
Os critérios de justiça levarão (por que não?) em conta o mérito,
mas apenas até o limite da extensão do poder que temos

(e nem sempre temos) de, pela nossa só vontade ou denodo, exercer ingerência
nas nossas condições presentes ou prementes, ou nas futuras, como já se vislumbra.
Assim, todas as crianças e incapazes receberão suas iguais partes
em educação, chances na vida, amor e dignidade,

independentemente do seu merecimento, ou do de seus pais ou pares,
para que possam quando e se possível
um dia também atender ao mérito ou a outro critério,
conforme se descubra ou convenha e lhes seja informado a tempo,

de modo que possam também buscar sua felicidade a despeito
das ocasiões de seu nascimento ou de sua herança genética,
e, por informados, lhes seja possível perseguir seus destinos
com a devida prudência e planejamento, garantindo

o direito de na velhice poderem viver vidas tão ou mais legítimas.
Que a propriedade seja respeitada desde que não prejudique o direito
de dignidade, e por isso se entenda estritamente autonomia,
de todos ou parte considerável dos outros,

e, se houver direito de herança, não seja tamanha
a ponto de pôr em risco os critérios
de igualdade de oportunidade e de mérito, bem assim as demais regras
do jogo que garantem uma organização capitalista equilibrada, justa e honesta.

A vida será preservada como o maior tesouro do universo numeroso,
mas sem terrorismo. A Terra deve ser preservada só porque berça a vida.
E, no conflito entre as vidas, prevaleçam as razões de sobrevivência
dos entes mais conscientes, desde que não haja outro recurso.

Não poderão os animais ser submetidos a maus tratos sem motivo
convincente, tal pelo cuidado de tratá-los se doentes.
E comê-los somente por prazer, havendo sobejas fontes diferentes
de prover-nos de nutrientes, será sempre e simplesmente um delito.

Mas tampouco será bastante abandoná-los aos cuidados
da natureza madrasta, pois fazê-lo igualmente consiste
em tratá-los com crueldade por omissão voluntária.
Haverão como nós de ser poupados de seus ditames, quando aviltantes.

E assim, para todos os fins, serão gente como a gente,
e, enfim, homens por direito,
dotados do direito inalienável e inabolível
de também serem homens.

E quaisquer dúvidas se resolvam
com sabedoria e compaixão, com amor e razão,
e se renove conforme as ocasiões o movam
este pacto dos direitos do homem e do bicho cidadão.

Thursday, January 5, 2012

POR UM PÔR-DE-SOL ENTRE AMIGOS


a C.B. e G.S.

Noite insone em Curitiba.
As nuvens voam plumas.
Vamos pro James!,
meu melhor amigo me convida,
o rock é brit, mas nacional a bebida.
Olho pro céu desestrelado.
Como soam sempre frias
as constelações a ouvidos esfumaçados!
Retomba a sempiterna penumbra,
mas se levanta sobre a mortiça iluminação pública
um esforçado, invisível circo armado.
E cada poste comprido não despede raios apenas,
mas também a sua própria sombra oblonga,
que segura como um arco de tenda
a face acanhada de todas as coisas
que porventura sua luz pequena
no seu trajeto teimoso encontra.
E algumas ainda se esquivam
cheias de vergonha,
dos passantes que as olhassem,
pois é alta madrugada e a classe
burguesa ainda sonha.
Linda, que cidade linda,
e quanto é tímida, e louca e puta!
Por todos os lados se escuta
uma garoa falando fina
com suas vozinhas nenhumas,
e um horror insolente
de repente arrepia,
um medo de ficar só
no meio de tanta gente.
Pensei: que do Cássio e do Gil?
Exilados do desolado sul sem sol,
mas ainda brancos de dermatologista,
mais parecendo dois turistas,
nunca desviam para além do Rio,
rumo a estes nossos gélidos desvarios.
Mas é sempre menos noite,
se comigo os trago por onde
me arrastam consigo os caminhos,
pois quem me conhece adivinha sozinho,
nunca fui nem sou conhecedor dos meus destinos.
E olho ao redor e procuro
talvez alguém que se esconde,
só para me dar um susto.
Sim..., está mais claro, e contudo
a busca não tem fruto.
Então tento apalpar em meu corpo a fonte,
da qual ouço esses passos,
que me acompanham se vou sozinho,
e param assim que eu paro.
E que me animam se eu me retardo,
e dão ombro ao meu cansaço.
Talvez algum gesto aprendido,
malgrado o pouco convívio, daqueles
que os amigos sempre
aos amigos comunicam.
E, por isso, às vezes, juro
reconhecer em algum deles
outro a quem procuro,
ou até mesmo, quem dera, um amigo futuro...
E, não fosse esse quase nada,
onde quer que fosse
era tudo somente noite.
E falta.
Falta grana e trabalho,
falta tempo e descaso,
falta ardor e cuidado,
em bom palavreado,
falta amor, porra (rsrs)!,
e mais um pouco de todas aquelas coisas
desnecessárias ou de que é preciso
para se poder melhor viver
(quem sabe um nascer de sol com amigos?).
Mas hoje, talvez, porque
é fim de salário
ou meio do mês,
faltam, repito, nada e tudo,
mas, sobretudo
faltam
vocês.

Wednesday, January 4, 2012

RECOMPENSO QUEM TROUXER NOTÍCIA



Perdi o meu livro
de filosofia da lógica.
Me ajuda, procura devagar,
já revirei mais de uma vez
as gavetas, que bosta,
última vez que vi?, porra, sei lá...

(já sentados) Perdi os problemas
que me pensavam (gole de chá).
Não, esse aí do Grayling
não é igual, aquele era importado,
puta livrinho caro
(derruba no chá um trago).

Que me resta fazer? Ver TV?
E eu lá tenho TV a cabo?
Emprego? Me reputam excelente cozinheiro,
mas, na moral, resolver um tempero
categoricamente não é o mesmo
que um belo sorites (já provou?) ou a Lei de Peirce.

(a língua já começa a embolar)
Livros e filhos são mesmo assim,
esses morcegos pendurados.
Viver cercado deles ensina ao menos
que são todos uns bichos traiçoeiros.
Há os que não valem nem o trabalho

da gente não ter se importado mesmo.
Às vezes, como adolescentes,
flertam com uma sua visita,
seduzindo ela com o seu halo de vítima,
(preenche a xícara)
no fim, se fazem de fato furtar e levar.

Outros se escondem
que nem meninos
fugindo do castigo
dentro da própria casa,
e deus sabe onde,
só pra se fazer procurar.

Ou pior, e no final é sempre igual,
simplesmente somem,
sem prévio aviso, me diz senão por que teriam
esses montes de asas
se não fosse
para voar?

SILÊNCIO PARA PRINCIPIANTES



descalço

de mãos vazias

mirando o vago

mas de quem esta voz que fala como se estivesse ao meu alcance, se eu não estou em nenhum lugar por perto

certa mão quase roça a minha, outro corpo como se apenas existisse, outro repositório de intenções fadado a desentender por completo

e como interromper um traço que esvoaça da minha cara sem ser jamais ter sido meu gesto?

vacilando eu consigo tocar nos teus lábios mais rápido que antes

cerrando os olhos eu posso enxergar o passo do tempo ainda mais alto

e dizendo dizendo o silêncio ensina silêncio para principiantes

Monday, January 2, 2012

SINFONIA



Todas as noites, com perfeito controle de quanto avança
Sobre o mundo a madrugada, escalam os gatos da vizinhança
A planície inacessível dos telhados, onde, em ordem, preparam-se,
Com os conhecidos ritos para a aguardada performance.

Lambem as garras como se afilassem, ciosos de quem assistisse,
O plectro dos instrumentos, extraindo a vivo uns sons de violinos.
E vaza então imenso dos os tetos, sob a variação de vagidos finos,
Um concerto composto, os senhores acreditem, de acordes tristes.

Guálter e Jezebel são prole legítima dessas telhas espúrias,
Promiscuamente conjugadas sobre os sobrados geminados.
Caídos da ninhada no terraço, dividem na casa os cuidados.
(In)diferentes que não se entende, que dirão da gente? Coisa nenhuma.

5 meses. A castração desperta nos pais subrogados desses rebentos
A mesma tensão solene de uma menarca ou de uma circuncisão.
Ao entregá-los, tremia de medo. Ainda aflito, vivos apanhei-os.
Antes de deixá-los dormir, tentei dar de comer. Como sempre, em vão.

Meio dormidos, meio despertos, agora previsivelmente se refestelam
Frente ao exautor da calefação. Um envolto no morno tecido do outro.
Hermeticamente encerrados dentro de si. Helveticamente neutros.
Anjos negros. Inocentes bichanos libertos do maestro tirano do sexo.