Wednesday, December 28, 2011

SONETO


se esse que me vê mas finge não ver
soubesse ouvir o que não lhe falei
se entendesse o que faz em não fazer
ou pudesse esconder o que eu já sei

se fosse só breve e não de repente
menos faltando na falta que faz
se sentisse muito por que não sente
ou fosse capaz de nada ou demais

mas se ele ao passar não passa jamais
e se lhe é igual se confesso ou desminto
e ganho o que leva e perco o que traz

se só o que ainda não há ou é extinto
é quanto vou ter sem tê-lo jamais
vou fingir ver verdade sob seu finto

AMORES DO FACEBOOK



Ele era portenho. Eu, curitiboca.
Nos conhecemos em Buenos Ayres,
com falso descaso trocando olhares
num festival de música eletrônica.

Silenciados o som e a noite estafante,
para melhor nos apresentarmos
pareceu bom nos reencontrarmos
pouco depois, num cruzeiro da atlantis.

Ficamos juntos na primeira tarde.
Mas logo já o foram cercando
os nativos e forasteiros tantos,
que me incomodava que não parasse

meu gatinho de perder-se no caminho
de voltar para vir dançar comigo.
Eu não falo nada de inglês,
e, misto de polaco e de francês,

por mais que esforçasse não despertei
maior interesse naqueles americanos aguados.
No final, passei todo holiday mais só que um frei
dominicano, casto num cubículo enclausurado.

Amores de verão, é sabido, sua brevidade
é que lhes confere sua peculiar qualidade.
Não duram mais que uma temporada,
embora possam muitas vezes doer mais

do que caras chamadas internacionais
e que, em casos tais, ponham desesperadas
almas feitas em pó, como corroídas
de desengano e nostalgia da noite pro dia.

Já esses amores do facebook,
previno logo que logo os recusem,
pois não conheço os que durem ao menos
o tempo de vir do banheiro.

VAGÃO NÃO-FUMANTES



Boa noite, Estranho.
Você por acaso fuma? não? só estava imaginando
se você não é dos que têm
certa fraqueza
pelo perigo. Com certeza,
eu sei que não se pode fumar no trem,
há uma placa gritando isso grudada na janela,
não há como fingir ficar cega pra ela.
Mas então será permitido ao menos
ter uma conversa?
Ou você é do tipo totalmente avesso
a falar com quem não conhece?
É, parece
que cometi um engano
imaginando que você falava com estranhos.

Ah, é que você está ouvindo um som...
Você acharia um abuso
ou acharia bom
se eu me sentasse junto
do ruído que sai do seu fone de ouvido?
Porque seus fones, eles assobiam, sabia disso?,
não dá para fingir ser surda e não escutar,
como esse barulho que sobe do motor
ou como os anúncios do condutor
informando em que estação vai parar.
Ou você finalmente escolhe
que eu não somente me sente aqui mas também cantarole,
isso iria enfim, mas que saco!,
te pôr zangado?
Eu mesma não me oporia se você me cutucasse com o braço

acompanhando a canção.
Vamos tentar deste jeito, presta atenção:
você canta pra mim baixinho a faixa,
mas, no caso de se sentir envergonhado,
você pode apenas estalar a língua
ao ritmo da batida.
Ou me leva deste vagão
e toda
a sua vasta escolha
no gênero da proibição,
para escutá-la em outro lugar, é para
lá que você vai, ou estou errada?
Eu não me oporia se você me levasse pra casa,
embora seja a casa de um estranho,
pelo prazer do perigo ou por engano.

Esta é a sua vida?
Este é a nossa
estação entreposta
enquanto não chegamos ao dia?
Você se incomoda em nos apresentar agora?
Você estudou para o seu trabalho,
ou ele é só uma espécie
de último recurso
ou o plano B de toda uma série?
Ah não me diga que nada é tão simples quanto pode parecer,
é sim senhor, previsível e claro como água,
é tudo
uma questão de pôr a questão exata
e ter a coragem de ouvir e entender
a resposta que tiver de aparecer.

Se eu tenho uma vida própria?
Meu Deus, o que você pensa de mim, cara?
Que eu sou a garota de borracha,
um robô de látex, pronta para
a próxima?
É óbvio que eu sou o que sou,
você preenche o resto da fala.
Que mais...?
Me deixa pensar como digo isto se sou capaz,
bem, eu gosto de gostar de garotos bonzinhos
ou de um bom fingidor.
Alguma categoria te inclui com certeza.
E mulher..., já tentei, pode crer,
mas são precisamente as diferenças
(e cada qual quer o que quer), que me dão prazer.

Você acabou ou não de me oferecer
algo para beber,
mas eu fingi de repente ficar surda
e não dei escuta?
Sim, me sinto escandalosa, indecentemente seca.
A maior parte do blablablá ficou por minha conta,
nenhuma surpresa...
Sim, tenho mais de vinte, talvez...
Não sou precisamente uma senhorinha distinta,
pode perguntar de tudo, tenho nada que esconder.
Sim, e algumas das minhas roupas
já estão na idade de irem pra escola sozinhas.
Sou dura, então a roupa tenta parecer casual,
ou é sem pretender, o que dá igual.
Saúde! Aquilo ali é uma cama de casal?

Você não tinha me prevenido que era um profissional.
Me sinto embaraçada. Suas mãos, Estranho,
elas realmente têm a pegada.
Acabei de fazer um elogio,
você agora deveria me dar supostamente
seu muito obrigado ou o que é isso...
Ora, o prazer foi todo meu!
E digo isso literalmente...
Como você é tímido!
Como isso te aconteceu?
Não se pode ser assim em dias como estes,
nem mesmo se você fosse um adolescente.
Somos socialmente treinados para parecermos inexpugnáveis,
justo no ápice
da era da vulnerabilidade.

Então você é o geniozinho dos satélites.
Eu era boa na escola com números e fórmulas de equação.
Mas nunca tocaram sinos para mim.
Sempre soube que deveria ser atriz.
Era o meu chamado e não tive saídas.
A gente mente o tempo todo, sobretudo para si.
Não deveria ser tão difícil
atuar no palco como parece simples atuar na vida,
mas quando você conhece o ofício
e tem que mentir as suas falas,
você começa a compreender por que não é bem assim.
A verdade se torna um compromisso.
E mentir com verdade. Faz sentido?
Aparece na bilheteria do teatro, te reservo uma entrada,
desde que jure não ser amnésico e dar sumiço.

Esta é a hora
de ir embora?
Porque jamais sei,
há sempre uma hora de ir embora?
Provavelmente sim, é o que eu pensei.
Mesmo quando se tem vontade
de só ir, talvez, mais tarde.
Mas eu tenho a intuição de que vou
ver você de novo, ou,
mais provavelmente, vamos nos ver um ao outro.
Então agora me deixa deixar um beijo na sua bochecha
e pronunciar a minha deixa:
tchau, Estranho. Adeus ou até quando seja.
Aquilo ali é um elevador?
Onde aperto o interruptor?

OS ESTRANHOS


I

Quando deitamos, a luz apagada,
como em metades rôtas nos retira.
Nem o mundo dos sonhos donde cada
qual revém nos funde e recomunica.

À noite, somos dois desconhecidos,
acaso na mesma cama dormidos.
Só nos percebemos quando acordamos
um ao outro, e enfim alguém ergue os panos

e avança a passo turvo até a janela,
revelando nela a luz amarela,
para, em seguida, trancar-se no banho.
E a solidão refaz-se então do espanto.


II

Às vezes me ocorre dormir com outro estranho.
Talvez um cheiro diferente então não deixe
levantar-se entre a gente a invisível parede,
e assim, se cansamos, segue um ronco falando

- alto demais, como a voz de uma má consciência,
ou muito baixo, de nua e muda inocência.
Paixão não é nenhuma razão para o sexo.
Nem amor pede sempre dois pra ser completo.

O desejo de ser desejada em quem amo
é legítima ambição da minha vaidade.
Mas amo a um estranho, que nada disso sabe,
e por não me amar ou já ter amado tanto

agora me obriga a dormir com um estranho.

Tuesday, December 27, 2011

NOITE DE ECLIPSE

na orelha bivalve, uma só mordida repartida
grita uma unha gretada no anular da esquerda
na cabeça, mil razões que se confirmam
ou se contradizem sem razão nenhuma

no bolso do paletó, uma foto embotada de suor
no avesso, um amor refugiado em tempo e espaço desencontrados
entre as mãos uma cintura, agarram este momento
os lábios em lábios duplicados, por quanto tempo?

no banco dianteiro, uma pergunta
suspiros confusos acordam a destinação
pneus percorrem nus a estrada escura
o taxímetro dispara, nos repara, ao fim se cala

no flanco da cama um lençol pendurado pede paz
o olho da lua finge que não distingue solidões quando contíguas
sobre a mobília um ventilador continua a nossa fuga
no relógio a hora destemida pisa um passo a mais

música se ouviria na algaravia dos ruídos, mas noutro dia
quando tudo fosse diferente, talvez do jeito que devesse ser
como saber? - e eram de novo o enlace de dedos, as meias palavras
mas, chegados ao termo, não foi dito nem registrado nada

além de um leve até mais breve
que dizia timidamente o contrário do que dizia sem dizer
o que se ouvia não era até breve de até mais breve ver
mas adeus resignado, adeus de nunca se ouvir dizer

Saturday, December 17, 2011

NÃO DIGA QUE SE IMPORTA SE NÃO SE IMPORTA


"Então por que você responde às mensagens dele?"

Sem pausa para ter o tempo de inventar um pretexto,
responde com a voz plana e vagamente sonhadora:
"Acho que ele me ama.
E isso merece consideração, ou não?"

"A-mor? Temo que no caso o termo lascívia seria mais exato."
(Ou ao contrário, deveria ter dito a ela que eu
sentia o mesmo, correndo o risco de lhe roubar
o prazer de se sentir culpada?)
Hora talvez de trocar de tom.
"Além disso, isso por acaso é problema seu?"
Seguro com força a sua coxa,
a garra de um lobo.

"Mas eu me importo..."

"Não diga que se importa se não se importa,
guarde para quando se importar de verdade."

Ela cede, seus olhos caem pesadamente no chão.
"Mas com você se deixasse eu me importasse"

Meu peito derrapa em disparada, um comboio descarrilhado.
Como uma roda girando no vácuo,
um meio-sorriso força passagem na minha boca ressecada.
"Pode ser, mas talvez também não seja da sua conta."

Gagueja ao tentar dizer alguma coisa,
logo se cala em si mesma numa mudez atordoada.

Eu recolho as palavras que roubei nos seus lábios trêmulos,
as palavras que hoje levo para casa
como o mais caro dos meus prêmios.

Wednesday, December 14, 2011

PASSADO DO FUTURO


antes que os homens falassem em metáforas
antes que palavras não fossem coisas
antes que houvesse poesia
antes que surgissem os culpados
antes que houvesse juízo
antes dos anjos e da progenitura dos anjos
antes que os homens também criassem
antes que o amor existisse
antes de depois ter sido
antes que sucedesse o sucedido
antes do ferro e do bronze
antes que ontem fosse hoje
antes do tempo e da eternidade
antes antes muito antes
o futuro quis nos trazer àqui

Sunday, December 11, 2011

SINFONIA



Todas as noites, com perfeito controle de quanto avança
Sobre nós a madrugada, escalam os gatos da vizinhança
A planície inacessível dos telhados, e preparam-se,
Com os conhecidos ritos, para a aguardada performance.

Lambem as garras como se afilassem, ciosos de quem assiste,
O plectro dos instrumentos, extraindo a vivo uns sons de violinos.
E assim, vaza imenso dos tetos, sob a variação de vagidos finos,
Um concerto composto, os senhores pasmem, de acordes tristes.

Guálter e Jezebel são prole legítima dessas telhas espúrias,
Promiscuamente conjugadas sobre os sobrados geminados.
Caídos da mesma ninhada no terraço, dividem na casa os cuidados.
(In)diferentes que não se entende, que dirão da gente? Ora, coisa nenhuma.

Cinco meses. A castração solene nos pais subrogados desses rebentos
Gera a mesma tensão de uma menarca ou circuncisão.
Ao entregá-los, tremia de medo. Ainda aflito, vivos apanhei-os.
Antes de deixá-los dormir, tentei fazê-los comer, sempre em vão.

Meio dormidos, meio despertos, agora previsivelmente se refestelam
Em frente ao exautor da calefação. Um envolto no morno tecido do outro.
Hermeticamente encerrados dentro de si, helveticamente neutros.
Invejáveis bichanos enfim libertos do tirano maestro do sexo.

PARA QUEM TIVER UM AMOR, SEGUIDO DE CONSELHOS E MANDINGAS PARA QUEM NÃO TENHA


quem tiver um amor que não o esconda
mas que estampe o seu nome sobre os muros
que acenda um fogo bem em meio às sombras
e indagado confirme a todo mundo

quem tiver amor escreva e repita
versos feitos para não entender
previna-se dos riscos desta vida
não é por você que ele vá morrer

quem tiver um amor, não o descuide
e o resguarde do vento e da estação
que o leve a passear lá junto das nuvens
sem deixar de segurar a sua mão

quando parecer muito, que o alimente
zele ainda mais se se mostrar franzino
quando for louco, enlouqueça igualmente
se são, paciente até perder o tino

não negue a dor, que é seu dom gratuito
e antecipa o perdão consolador
se não estiver presente, espere muito
ou pouco e, como for, sem amargor

e exausto da espera, diga assustado
num abraço: "ué, você já chegou?"
roube à noite um lençol estrelado
e sonegue o perfume que lhe emprestou



***

mas quem não tiver, não tiver amor
saia às ruas com bom ou mau humor
e tome a barca mesmo em dia nublado
pode ser que ele esteja do outro lado

quem não tenha amor pare de fumar
dirija devagar, quase parando
(olhando os lados, buscando a um estranho)
pois não se exclui que ele tarde em chegar

quem não tiver amor cultive amigos
com que passear as solidões, e a mais
leia o horóscopo do amor nos domingos
e um guia com simpatias e patoás

quem não tiver amor adote um cão
para preparar-se para vigiar
troque todo dia a toalha de chão
e se mande flores pra se habituar

cuide que venha em domingo nublado
e que esqueça em casa o seu guarda-chuva
mande mensagem apontando o achado
e que aguarda a sua visita segunda

e quando ele vier, quando vier
indague se foi, com irônico espanto
o manco trânsito o que o tardou tanto
e se quer um café... e um cafuné

LÍRICA PARA MELODIA NENHUMA


a R. A.

Ainda depois de a história se ter fartado de recomeços,
depois de terem perdido as estrelas direção,
e a luz inteira do universo deixar o espectro
avançando para o vermelho,

eu estarei à tua volta a amortecer os teus passos,
resguardando-os da sorte e da morte
com a lâmina desfiada
de minha espada de palavras.

Mesmo quando o mundo houver
abandonado sua melodia sem ritmo sem pés,
e mudas estiverem até as vozes da companhia,
e somente um vento vier desviar as nossos vias,

soprando em desafino,
te estenderei minha bússola sem agulha,
e a constância destes pobres
versos de vime.

O silêncio pode parecer imorredouro para quem o teme,
mas para um amor que sobredure, como este, ao próprio amador,
resta sempre uma promessa,
e esta sim há de ser eterna.

BALADA DO JUDEU ERRANTE



Houve esse homem e a acusação de impiedade.
Antes outros houve e as respectivas sentenças.
Pensei em Sócrates, em Mitra e em Dionísio.

E outros mitos que intentam tornar necessário
o que é contingente e exíguo, no vão trabalho
de converter a muda existência em sentido.

Ao ver como o arco dos soldados à sua volta
era a sua vez também cercado de outros arcos
cêntricos de curiosos e de outros fanáticos,

me ocorreu certa imagem, em remotas partes
do orbe difundida, a qual retrata o tempo
como uma roda a circular, e cada evento

como um elo frágil na torrente inexorável
que, ao tornar pó ao pó, devolve o tempo ao tempo.
Essas especulações nunca me impressionaram.

Explicar o mundo é da natureza humana,
mesmo se faltam (e sobretudo quando faltam)
evidências que, presentes, as validassem.

Mais que outro nos falta o que nos sobra e é antes
que qualquer acerto ou erro mais importante:
a louca e lúcida coragem de espantar-se.

Por isso eu, que ano após ano, num infindo afinco,
de sapateiro tal meu pai, me fiz leitor,
e após ter sido preceptor, me fiz rabino,

e ébrio em filosofia abjurei minha fé,
exausto em ser presa do espanto ou desatino,
tendo escrito e borrado no meu pergaminho

e apagado e de novo desescrito, até
que nele já não se gravasse mesmo a cor
com que o tempo em seu próprio linguajar arcano

informa aos que ficam que veio e que passou,
ao fim virei eu mesmo um pergaminho branco,
impermeável a todos os desvarios humanos.

A memória é composta da própria substância
do sonhos, e por isso com eles se cancela
e quanto for mais remota, mais se confunde.

A tal passagem do andarilho foi-me um fato
trivial, não deitou as suas pegadas nos sulcos
por que escoa o fluxo das lembranças. Só muito

mais tarde, suspeitei que fosse apta a explicar
meu destino singular. Fiz então recurso
ao relato de amigos, cujos testemunhos

(como quaisquer, apenas parciais à verdade,
a qual é, mais que a soma das partes, o muro
que detém a mirada e nos faz incapazes

de saltar adentro e mirar-lhe face a face)
convergem para a tese exaltada do vulgo,
que conta que esse dia ousei julgar por descuido

da justiça de ato que não me pertencia.
Relatam que ao passar por mim rogou por água,
e eu, a par de negar, ri e cuspi-lhe na face

terrosa em pó e sangue, e então aviou-me a praga
segundo a qual, para poder deixar o mundo
teria de esperar seu retorno futuro.

Mas como me acusar de soberba maior
que a do herege, ao oferecer-me a outra face?
Perdão não peço, a forma mais vil de ser pior.

Perdão só se diz. Atos sim, mudam o mundo.
Concedo que não exerci os que me sanassem
E tantas coisas vi, tantas coisas vivi,

que o impossível parece pura expressão
de nossa impotência ou falta de compreensão.
Vi o idioma dos meus avós ressuscitado,

Vi fogos em que uns tolos a outros queimaram.
Judeus, como eu, de tez escura, e os de olhos claros.
Hoje penso que ser judeu é menos traço,

aliança, sangue ou certo passo amordaçado,
que a aderência a uma terra a que não se pertence,
mas à qual não pertencemos teimosamente.

Vi tanto sangue ser por nada derramado,
que um tom enferrujado às vezes contamina
os cascos das embarcações que, nas marinas,

sem recear a sua sede de mais suor e lágrimas,
se abrigam na boca salivante do mar.
Todos que conheci vi um a um perecer,

sem ao revés imprimir-se em mim só uma marca
das minhas viagens. Como se, ao ser poupado
das intempéries da vida, delas também

nada levasse. Se falta memória a quem
quer resgatar o fio de uma vida finita,
mais frágil será aquela que abarca uma linha

que se encomprida tanto até perder de vista.
Porém gozei das dores e das alegrias
que compõe qualquer espécie de vida e foram

a seu momento a tal ponto avassaladoras,
que o que mais espanta é serem hoje meras sombras,
que me cegaram e depois se dissiparam

em cada um daqueles nos quais eu sucedi.
Dessa morte banal, quotidiana, melhor
sabedor que eu não há. Somente a sei de cor...

Minha sina será morrer a todo tempo.
Nunca serei o mesmo nem serei algum.
Não gozarei da narrativa de uma vida.

Tudo o que eu tiver vivido será comum
a todos que viverão antes ou depois
de mim. Sentidos só tocam a quem é um.

Finito, terá uma só chance de errar
ou de andar reto, sua vida pouca cuidará
em erguer com o cuidado de uma obra de arte,

cujo molde, mesmo apagado, seguirá
possuindo a linha irrepetível do seu traço.
E sentirá a glória do acerto e a dor do erro.

Já ao imortal cabe no mundo poder ser
tudo mas sem deixar nada só seu. Pois tudo
é repetível por princípio, e repetível

ao infinito. Haverá acaso pior castigo,
de estar errante e carregar como destino
ter de ser sempre igual a quem nunca fui antes?

De estar desprovido do dom de dar sentido,
ainda ficto, a uma vida cuja narrativa
plena de graça ou amarga de vilanias

em face ao mundo e a mim mesmo a justificasse?
Me indago porque eu, que mais que qualquer outro
e que mais vezes pude usar-me da maldade

mereço um segundo retorno em ser redento,
enquanto aos demais homens só tocou um momento.
Por que em meu só favor, em que pese a demora,

Lhe ocorreria regressar uma outra volta?
Talvez conte que logre salvar a meu turno
o mundo do ciclo inexorável do mesmo.

Chego à parcela amarga da minha defesa.
E de vocês me compadeço ao vir trazê-la
perturbar sua inocência. Disse que o imortal

é o mesmo que qualquer homem, uma vez que
tudo que fizer é incomensuravelmente
reproduzível. Mas que dizer do mortal?

Acaso seus feitos e amores nunca invocam
outros lampejos tanto dos que já morreram
quanto dos que, inascidos, um dia, morrerão?

Sabe alguém dizer quantos inventaram a roda?
Por isso concluo que só o olvido é o veículo
da mais verdadeira forma de salvação.

Só o olvido pode preservar o singular de
Cada ente da vala comum da eternidade.
Essa a missão com que me ungiu a me cuspir.

Mas não há ser tarde. Um dia repisarei
aquela velha estrada, perdida no pó,
por que parti, a lembrar-me de que um condenado

se acercará de mim pedindo um trago d’água.
E eu já a terei presa à cintura p’ra ofertá-la.
Chegado finalmente o mesmo dia, após a

roda do tempo haver cumprido um ciclo pleno,
estarei pronto a impedir que o tempo refaça
uma segunda volta.


São Paulo, composto em 2008-2009, perdido e reescrito, a memória, em 2010

Saturday, December 10, 2011

BIOGRAFIA


Tudo começou talvez só por jogo, e então já era.
E houve alguns fins sinceros, e alguns falsos por princípio.
Mas quando ele enfim se deu por isso, ai meu deus, quem dera.
Chegara ao ponto sem volta, em que viver vira vício.

Teve o meio-gozo do alívío, e o cheio da alegria.
Temeu perder os seus e aprendeu a falar com deus:
Falar sem ouvir. É, no início, tudo parecia
Simples e complicado, ou infinito como os céus.

Os riscos desajeitados foram ganhando formas.
Bom dia ao chegar, ao despedir-se dizer adeus.
Notou coisas erradas e se imaginou reformas.
Depois de ser tantos quixotes, vieram os romeos.

Ah, teve também othelos, finalmente, os dons juans.
E como demorava a espera: num só dia quanto meses?
Não devia ter trem donde vinham os amanhãs.
E nessa era nas aras de Amor queimou tantas vezes,

Que, ressurgido, ficou difícil não se habituar
E aspirar ao fogo, sabendo voltar sempre em cinzas.
Até se cansar do jogo e teimar em se casar.
Sitiou a meta resistida e levou aos confins as

Suas forças de humilhação. E ao fim, prostrado, venceu.
E é só nos olhos de um filho levado a ver o mar
Pela primeira vez que a eternidade ergue o seu véu
Sob o qual se guarda e neles se deixa contemplar.

Mas tudo tão veloz que mal dá tempo pra lembrar.
Não há o tempo do sono, mais pensado que pesado,
Não há o tempo pra casa dos pais nem pra hora do bar.
Sequer o do trabalho, o maior, e pior empregado.

Não há o tempo de viver, nem o tempo de morrer.
Repito. Simplesmente não há tempo. E após a pressa,
A sensação amarga de olhar pra trás e não ver
Em que lugar do projeto não se encaixou a peça,

Onde um simples erro gerou uma série de eventos
Que a outros apenas reforçaram. E mais do mesmo.
Descontados os desleixos e os desmerecimentos,
Acabou tudo meio sem conserto, e meio a esmo.

Se faltaram esforços ou acasos os desviaram,
Há motivos para se entender? E acaso interessam?
Quantos silêncios baldios nas frases que faltaram...
Quanto menos razões, mais se pede que não se peçam.

Pois sábios são os que sabem que não devem saber.
E quando se reúnem, esperam que não se meça
A sorte de cada um. Que servia reviver
O que feneceu mesmo antes de ter sido promessa?

Creu em mitos bons, que ajudam a esquecer o esquecido.
Só cuspiu sua fé depois de o mundo tê-lo engolido.
No fim, entendeu que ao tempo só roubamos olvido,
Mas que o que não roubamos é puro tempo perdido.

Foi usando os dias e enxergou o que não queria:
Ao espelho, com receio, confessou envelhecer.
Não desejou perdão, e outro remédio não havia.
Aceitou como única ambição o sonho de ser

E dele jamais despertar. Teimoso, foi ficando,
Agora já coberto de cabelos brancos. Quando
Voava um amigo, insistia em não seguir o bando.
Perdeu o medo de avião. Já não estava no comando.

Partiu um filho cinquentão, somente uma criança.
Transcorria mais tempo chorando que se vestindo.
Mas, desacostumando em ver e ouvir, uma esperança,
Ainda a distinguia acenando ao longe e mentindo

As mentiras belas que a gente insiste em se mentir.
Na desocupação da senilidade pensava
Em voltar a viajar, jogar bola, se divertir.
Só bebia se bailava ou se o santo reclamava.

Fumar, então, nem se pensava. Porém, imprevista,
Acometeu-lhe uma doença, e depois da primeira,
Uma mais grave em seguida, que foi, sem deixar pista.
Era tampouco a derradeira. Um elo na fieira.

Os dias mais longos são justo os que a lembrança mais furta.
Como quem tudo ainda espera, examinou em revista
A vida que inventara, e julgou-a boa. Mas curta.
Até que um dia, ao fechar os olhos, sumiu da vista.

Friday, December 9, 2011

EU SOU O QUE ME FAZ FALTA


Eu sou o que me faz falta
o que quero é o que me move
o de que mais careço só me preenche
tudo o que desejo porém não tenho

Eu sou aquele que não é
o que deus não poderia ter sido
sou a contingência da minha liberdade
híbrido de espontâneo e definido

Eu sou quem não soube amar
por isso detestavelmente universal
sou só sou todos nós
da medida do mundo nada e ninguém

Eu sou a vida a cada momento
modelo de armar
tanta argila tantos descomeços
e nenhuma pista

Eu sou a morte
tanto pó levantado agora
retomba ao chão na noite indivisível
espera amanhã o buliço baldio de novos passos

Eu sou o tesouro de todas as possibilidades
falhamos em dar-lhes carne
mas esperam o futuro que só conheço à distância
mas não escuto e detesto as mentiras da esperança

Eu sou a visita que virá e não se aguardava
um raio um trovão sou o medo
a casa que se mantinha fechada
capim alto a invado tenho fome

Sou o estranho que passou na estrada
e sem pedir bebeu tua água
pergunto a direção não dizem nada
mas não sei sentir raiva eu só me divirto

Eu sou o inimigo aquele a quem você matou
a viúva chorando gotas de desejo seco
também teu filho pão e suor escorrido
à mesa à ceia teu sangue compartido

Eu sou a lembrança dos mortos
amigos nos falam das profundezas dos sonhos
mãos que nunca voltarei a serrar como foi fácil
evitar os gestos justos hoje lamento mais que tudo

Eu sou a tristeza não fujo se me enfrenta
insisto em arrostar-lhe a face horrenda
que me cuspa me humilhe que me mate
não quero sabedoria quero fortaleza

Eu sou carência não sou desapego
só tenho compaixão porque não a mereço
sou o amor e as besteiras de amor
o amor que não sabe ser só mas nunca hesita em nos morrer

Eu sou mais louco ainda
nele me prendo se me treme não o temo
quero o que quero não me preservo mas todo me entrego
não remoo nem peço eu apenas cuido

Eu sou o verso quanto mais o perverso
minha palavra é a minha espada de vime
sou o feio o avesso do sublime
pródigo de uma beleza que desconheço

Eu sou o canto reiterado e a cada retomada
um silêncio seu que nos diz ao contrário
sou esse desespero esse grito que me escapa
me impede de calar e me espalha

Eu sou o que ninguém entende nem quisera
voz de minha não tenho só as que me emprestam
sou os acordes dos instrumentos todos soando a contrassenso
a confusão e o ruído sou o barulho bem-vindo ao mundo

Eu sou o sal e a manhã da promessa
é ouro o que se esconde por baixo da terra escura
nós somos a boca desse lodo que canta e nos olhos o estupor
du um mundo posto a nu sem qualquer pudor

Eu deformo a vida que toco
outro não posso pois a quero demais
sou bom e mau mesmo bruto diamante
cru e recozido infimamente gigante

Eu sou o erro o engano inevitável
de quem não teve outra maneira
a não ser erguer-se sobre a areia
o medo eu sou me vejo eu sou o horror

Eu mexo e remexo é não tenho jeito
fogo-fátuo fagulha me arrojo me afogo
mas na carne finco este prego
fui eu eu não nego

GANIMEDES


no rastro da tarde levantou-me
em meio aos homens
e nos levou ao céu.
foi fome o que o moveu,
mas híbrida de ternura,
claroescura,
e desde então nunca
treva nem culpa se atreveu
a turvar a lúcida renúncia
à lei que rompeu
o próprio deus.
destas alturas de abismo
já não distingo
a noite do dia,
nem o sonho da vigília.
parece que um sempre
tem começo sem que
o outro lhe ceda o posto.
não me espanto.
sou a presa mas também o raptor.
sou o rosto em que o barro
brotado de mina estéril
bebe da água
do seu próprio pranto.
sou o que o desejo desperto
de si mesmo cala:

sonhou-me o amor.

REALITY  SHOW



todo mundo neste mundo
sabe quem você é
menos você mané

e todos sabem quem são e quem não,
só você é que não sabe
que é o cara da televisão

você nasceu e cresceu
no estúdio D
de um canal de TV

tuas angústias e riscos são irreais:
tuas angústias são roteiros rasteiros
e teus riscos seguros compostos com juros s/ juros compostos

se você sai na noite
e sente que foi a estrela
por não saber você acertou na cabeça!

se você se perde e de repente
surge um táxi pela frente
tenha certeza: alguém ligou da empresa

você é o produto de um tempo
que sabe que a vida não tem sentido
mas supre a falta com o invento

teu show bem que se beneficiaria
de um acontecimento
de verdade

já você e todos nós
mais carecíamos era de um choque
de realidade

MEMÓRIAS DE UM CAVALO DE MADEIRA



do meu senhor recebi olhos
para não entender o mundo
e chorar pelos meus mortos

do meu senhor recebi mãos
para segurar com cuidado
tudo o que não tinha

do meu senhor recebi a morte
para fugir dela como se pudesse receber a vida
sem ter que nada oferecer em contrapartida

meu senhor me deu espelhos
para poder ver cada vez mais rápido andar o tempo
e seguir sempre com maior esforço o branco das têmporas

meu senhor me deu água
para que eu desse da minha pequena ração a quem me pedisse
e para com ela lavar meu sujo e disfarçar o odor do meu trabalho

meu senhor me deu amor
para poder chegar a ser também mulher, louco e menino
e aprender a perder e perder de novo o que tinha aprendido

meu senhor me deu ódio
para deixar que me batessem os que eu desmentisse
e andar com zelo no mundo mas sem nunca ter medo

meu senhor me deu a alegria
para que outros se comprazessem com a minha companhia
e num outono, abandonado aos meus cães, ressentir o prazer da solidão

meu senhor me deu pés
para rastejar ao pedir perdão
e voltar à casa de onde não deveria ter partido

meu senhor me deu ouvidos
para eu escutar em silêncio a sua voz
como se ouve uma música que insiste em se esquecer

meu senhor me deu narinas
para bater contra o vidro indevassável de uma vitrina
e sentir o cheiro do pão tentar minha fome mendiga

meu senhor me deu comida
para sentir fome uma vez terminada
e ter forças para ir de novo buscá-la

meu senhor me deu a dor
para eu aprender a enxergar nas sombras
e sorrir para quem não me cuidou

meu senhor me deu o pensamento
para que eu pudesse ver o que não vejo
e soubesse mentir, e voltar atrás, e depois recair no erro

do meu senhor recebi a memória
para eu inventar um céu de infância que nunca existiu
e pensar ser sempre o mesmo, mesmo fluido como um rio

do meu senhor recebi o mundo
para ser um bom jardineiro e em vão buscar deter o mato
que acerca e um dia engole a plantação

do meu senhor recebi a vida
inocente ainda para que me instruísse
e depois deixar inútil gravada no olvido a minha lição