Sunday, December 11, 2011

BALADA DO JUDEU ERRANTE



Houve esse homem e a acusação de impiedade.
Antes outros houve e as respectivas sentenças.
Pensei em Sócrates, em Mitra e em Dionísio.

E outros mitos que intentam tornar necessário
o que é contingente e exíguo, no vão trabalho
de converter a muda existência em sentido.

Ao ver como o arco dos soldados à sua volta
era a sua vez também cercado de outros arcos
cêntricos de curiosos e de outros fanáticos,

me ocorreu certa imagem, em remotas partes
do orbe difundida, a qual retrata o tempo
como uma roda a circular, e cada evento

como um elo frágil na torrente inexorável
que, ao tornar pó ao pó, devolve o tempo ao tempo.
Essas especulações nunca me impressionaram.

Explicar o mundo é da natureza humana,
mesmo se faltam (e sobretudo quando faltam)
evidências que, presentes, as validassem.

Mais que outro nos falta o que nos sobra e é antes
que qualquer acerto ou erro mais importante:
a louca e lúcida coragem de espantar-se.

Por isso eu, que ano após ano, num infindo afinco,
de sapateiro tal meu pai, me fiz leitor,
e após ter sido preceptor, me fiz rabino,

e ébrio em filosofia abjurei minha fé,
exausto em ser presa do espanto ou desatino,
tendo escrito e borrado no meu pergaminho

e apagado e de novo desescrito, até
que nele já não se gravasse mesmo a cor
com que o tempo em seu próprio linguajar arcano

informa aos que ficam que veio e que passou,
ao fim virei eu mesmo um pergaminho branco,
impermeável a todos os desvarios humanos.

A memória é composta da própria substância
do sonhos, e por isso com eles se cancela
e quanto for mais remota, mais se confunde.

A tal passagem do andarilho foi-me um fato
trivial, não deitou as suas pegadas nos sulcos
por que escoa o fluxo das lembranças. Só muito

mais tarde, suspeitei que fosse apta a explicar
meu destino singular. Fiz então recurso
ao relato de amigos, cujos testemunhos

(como quaisquer, apenas parciais à verdade,
a qual é, mais que a soma das partes, o muro
que detém a mirada e nos faz incapazes

de saltar adentro e mirar-lhe face a face)
convergem para a tese exaltada do vulgo,
que conta que esse dia ousei julgar por descuido

da justiça de ato que não me pertencia.
Relatam que ao passar por mim rogou por água,
e eu, a par de negar, ri e cuspi-lhe na face

terrosa em pó e sangue, e então aviou-me a praga
segundo a qual, para poder deixar o mundo
teria de esperar seu retorno futuro.

Mas como me acusar de soberba maior
que a do herege, ao oferecer-me a outra face?
Perdão não peço, a forma mais vil de ser pior.

Perdão só se diz. Atos sim, mudam o mundo.
Concedo que não exerci os que me sanassem
E tantas coisas vi, tantas coisas vivi,

que o impossível parece pura expressão
de nossa impotência ou falta de compreensão.
Vi o idioma dos meus avós ressuscitado,

Vi fogos em que uns tolos a outros queimaram.
Judeus, como eu, de tez escura, e os de olhos claros.
Hoje penso que ser judeu é menos traço,

aliança, sangue ou certo passo amordaçado,
que a aderência a uma terra a que não se pertence,
mas à qual não pertencemos teimosamente.

Vi tanto sangue ser por nada derramado,
que um tom enferrujado às vezes contamina
os cascos das embarcações que, nas marinas,

sem recear a sua sede de mais suor e lágrimas,
se abrigam na boca salivante do mar.
Todos que conheci vi um a um perecer,

sem ao revés imprimir-se em mim só uma marca
das minhas viagens. Como se, ao ser poupado
das intempéries da vida, delas também

nada levasse. Se falta memória a quem
quer resgatar o fio de uma vida finita,
mais frágil será aquela que abarca uma linha

que se encomprida tanto até perder de vista.
Porém gozei das dores e das alegrias
que compõe qualquer espécie de vida e foram

a seu momento a tal ponto avassaladoras,
que o que mais espanta é serem hoje meras sombras,
que me cegaram e depois se dissiparam

em cada um daqueles nos quais eu sucedi.
Dessa morte banal, quotidiana, melhor
sabedor que eu não há. Somente a sei de cor...

Minha sina será morrer a todo tempo.
Nunca serei o mesmo nem serei algum.
Não gozarei da narrativa de uma vida.

Tudo o que eu tiver vivido será comum
a todos que viverão antes ou depois
de mim. Sentidos só tocam a quem é um.

Finito, terá uma só chance de errar
ou de andar reto, sua vida pouca cuidará
em erguer com o cuidado de uma obra de arte,

cujo molde, mesmo apagado, seguirá
possuindo a linha irrepetível do seu traço.
E sentirá a glória do acerto e a dor do erro.

Já ao imortal cabe no mundo poder ser
tudo mas sem deixar nada só seu. Pois tudo
é repetível por princípio, e repetível

ao infinito. Haverá acaso pior castigo,
de estar errante e carregar como destino
ter de ser sempre igual a quem nunca fui antes?

De estar desprovido do dom de dar sentido,
ainda ficto, a uma vida cuja narrativa
plena de graça ou amarga de vilanias

em face ao mundo e a mim mesmo a justificasse?
Me indago porque eu, que mais que qualquer outro
e que mais vezes pude usar-me da maldade

mereço um segundo retorno em ser redento,
enquanto aos demais homens só tocou um momento.
Por que em meu só favor, em que pese a demora,

Lhe ocorreria regressar uma outra volta?
Talvez conte que logre salvar a meu turno
o mundo do ciclo inexorável do mesmo.

Chego à parcela amarga da minha defesa.
E de vocês me compadeço ao vir trazê-la
perturbar sua inocência. Disse que o imortal

é o mesmo que qualquer homem, uma vez que
tudo que fizer é incomensuravelmente
reproduzível. Mas que dizer do mortal?

Acaso seus feitos e amores nunca invocam
outros lampejos tanto dos que já morreram
quanto dos que, inascidos, um dia, morrerão?

Sabe alguém dizer quantos inventaram a roda?
Por isso concluo que só o olvido é o veículo
da mais verdadeira forma de salvação.

Só o olvido pode preservar o singular de
Cada ente da vala comum da eternidade.
Essa a missão com que me ungiu a me cuspir.

Mas não há ser tarde. Um dia repisarei
aquela velha estrada, perdida no pó,
por que parti, a lembrar-me de que um condenado

se acercará de mim pedindo um trago d’água.
E eu já a terei presa à cintura p’ra ofertá-la.
Chegado finalmente o mesmo dia, após a

roda do tempo haver cumprido um ciclo pleno,
estarei pronto a impedir que o tempo refaça
uma segunda volta.


São Paulo, composto em 2008-2009, perdido e reescrito, a memória, em 2010

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